Erbengardo não perdoa
Conheça a história do curioso e inovador escritor que matava seus inimigos e compunha pomposos e inesquecíveis necrológios logo em seguida.
Reunidos nos três volumes do livro Como me enganei! É preciso se perdoar, os necrológios do autor constituem verdadeiros modelos de como se fazer homenageados se arrependerem por não terem contribuído antes para panegíricos tão elevados. Observam-se valores estéticos intrínsecos em tais textos. Os textos de fato conseguem sobreviver muito bem à fugacidade epitafial, ao tentarem enterrar tais valores, em face da própria sobresignificação meticulosa conferida aos homenageados. Podemos até dizer, a carreira de Erbengardo estaria muito bem representada se do autor fossem publicados tão só estes trabalhos primorosos — uma espécie de especialização literária insólita e sem dúvida inovadora, trabalhos nos quais a memória concede relevância ao que dali em diante não seria mais perdido.
Todavia as sombras vieram indiscutíveis. E o fato é, depois de tanto tempo conhecido e distinguido-em-livro por estes pequenos exemplos de “ourivesaria da necrotolerância”, as revelações assombrosas sobre os métodos utilizados por Erbengaldo para “arrancar de suas matérias consentimentos tão incondicionais” alcançam agora um primeiro plano. Um plano do qual caímos todos, abismados, feito itens a mais do rol de vítimas. Enquanto o autor permanece protagonista dum epitáfio que não pode ser escrito. Por falta de sobreviventes.
“Virarem matéria fértil para minha escrita, isto mais ou menos os redimia de sua incitação inata à farsa. Assim descobri que até eles eram úteis. Era só não atrapalharem. Eles mereciam; nós também” — inicia-se assim a peculiar autobiografia do autor, A felicidade aos meus pés. É nela que tomamos conhecimento de sua longa e estranha carreira. É em tal livro também que as vítimas surgem, por meio dum artifício no mínimo excêntrico: são eles, os necrológios, de novo; mas desta vez “compostos” justo pelos “personagens forçados”, vale dizer, pelas próprias vítimas. Que assim estariam mais ou menos como que devolvendo a cortesia, ao arrolarem os motivos pelos quais, no momento da composição dos textos mesmos, Erbengardo não houvera sido esganado ou empalado”.
O tom e o teor destes textos é especial na carreira do autor. Nota-se ser neles atingido sem dúvida um pico estilístico, como se as loas só estivessem à espera dos termos certos e do objeto certo durante todo o período anterior, uma época de treinos, então. Os termos certos, dirigidos ao homenageado certo, terem vindo das pessoas erradas — esta seria, tudo leva a crer, a prova definitiva de superação e de atingimento de patamar literário andares e andares acima.
“Sobrevivi enfim por força dos meus próprios argumentos.”
Constata isto Enbergardo e determina, a certa altura do posfácio. Para logo adiante disparar uma conclusão um tanto controversa, que, longe de esgotar o assunto, sem dúvida é um fator a mais a aguçar as curiosidades:
“Nada como morrer sem inimigos… e, nesta vitória final, ser felicitado por eles.”
Confiram o histórico das estrambóticas conceituações deste autor tão controverso. Bem como as descrições poéticas das circunstâncias de cada morte também de sua autoria. Seguros de sua amizade, de seu perdão, de suas flores.
Fugido e bem pago
Saiba como.
A emocionante história do ideólogo e político Alfredo Bimbão, em texto profundamente poético e cheio de saudades. Um texto que foge, ele também, de nossos horizontes mais rotineiros. Bimbão, intelectual de primeira mão, tentou, tentou, mas um dia viu: hi! não dava! Seria difícil ser honesto no Brasil. Como? O preço do pioneirismo era por demais pesado. E Bimbão optou por uma noção mais igualitária de “ser no mundo”. Optou por uma sociedade mais equânime, dividindo o produto do roubo do dia, irmanamente. Optou por ser realista, o que era ser honesto nas atitudes e nos preços, cria. Aceitou sim sua parte no “negócio”, sua parte numa sociedade mais solidária e viu-se igual a todos: uma libertação!
A seguir, foi só viajar, para refletir sobre isso, sobre a profundidade de seua escolha. Sem querer discursar sobre esteiras morais e etc. Estaria ele certo?
“Me pagaram pra eu desistir da minha retórica, dos meus discursos, do meu programa e mesmo do meu papel intelectual, e eu disse, “Deste papel não!” Daí fui dar palestras por aí, usando dinheiro público, sim, porque é algo a merecer ser grande o meu discurso! E daí? Ele serve a todos! Fui por aí, conhecia sim melhor o mundo, fui em busca de algo menos provinciano e de ar menos rarefeito, algo maior! Pena era nunca haver tradutores disponíveis onde eu palestrava, na Turquia, em lugares ermos da Austrália, nas Ilhas Papua ou na Argentina.
Ao fim, concluí, a sociedade não estava realmente preparada para mim. Por quê? Eis a segunda parte da questão.
Mas agora era melhor eu refletir sobre isso, era melhor eu ir pensar melhor no assunto em lugares mais apropriados, mais abertos, mais receptivos à livre expressão, Zurique, Roma, Veneza, New York, Búzios, Buenos Aires, Praga, Rio, Veneza ou Viena e Berlim. Eu havia chegado a uma ótima conclusão e agora merecia os louros da maturidade. E o Brasil me pagasse por isso também. Você merece? Ora, exija seus direitos de cidadão, então! Uma outra lição, eu a aprendi, de passagem. Sempre de passagem.”