Aquileu, o que jamais desceu
Esta a abismante trajetória do às da aerodinâmica Aquileu de Andrada. Na década de setenta, Aquileu tivera a sua ótima mas arriscada ideia: o chamado “voo de longuíssima duração”. Desafiado por si mesmo, sobre se poderia criar a asa-delta perfeita, um artefato capaz de pairar por praticamente tempo indeterminado, Aquileu, depois de quarenta e dois modelos falhados e onze fraturas, por fim conseguiu, acabou inventando a impressionante “Eternuum 2000” — o extraordinário equipamento que, logo no primeiro (e único) voo, obteve uma marca a já constituir absoluto e abismante recorde.
De fato, no comando, ou quase, de sua criação há quarenta anos (um absoluto prodígio de sustentação) — lá vai Aquileu, o homem mais livre do mundo, da ascensão à queda, no ar, sem descer jamais. Para onde irá? Quem sabe?
Quantas histórias, quantas aventuras, quantas paisagens e quantas impressões não haverá de ter tido Aquileu, o meteoro?
De fato, durante seu longuíssimo voo, Aquileu viu, reviu e sem dúvida refletiu muito. Refletiu acima das questões, dos postes, dos telhados, dos paraquedistas, das nuvens, das chuvas, das pequenas cabeças, dum mundo baixo que já não era mais o seu. “Capitão Aquileu” também seguiu muitas correntes, muitas delas perigosas. E, lógico, sobrevoou por muitas paisagens diferentes e distantes, que o deixaram sem fôlego e quase… sem vida. Certa feita, quase morreu perto da Antártida, conseguiu sobreviver ao frio tão somente graças a uma ideia inusitada, mas ela afinal acabou por dar certo: masturbar-se em pleno voo, tentando sambar e compor um rap; ao mesmo tempo, concentrava-se no seu “plano de voo”, algo de difícil execução. A aventura lhe custou algumas neuroses, uma bronquite, uma tuberculose e muitos pesadelos eróticos (“mulheres geladas, ou seja, mortas, me dão um… inconfessável prazer inusitado… e grotesco e eu acordo gritando: morta nããão!!”) Porém, sobrevivera após a duríssima extensão de gelo: que mais se queria? O que mais se quer, afinal?
Já quando sobrevoava a capital paulista, Aquileu foi atacado por fogos de artifício, lançados decerto por pessoas a não aguentarem estar por baixo de forma tão visível assim. Foi difícil manobrar para escapar dos tiros, “mas as placas de eternit estão aí para isso também”. A seguir, depois de Aquileu ter conseguido se proteger das ameaças letais, narra-se no livro, os malfeitores foram perseguidos em rasantes de dar medo e um deles foi socorrido pelo SAMU a tempo, antes de engolir uma miniantena parabólica. Uma experiência de comunicação e ela não lhe coube bem.
Há no livro toda uma miríade de eventos, de experiências, de impressionantes reveses e perigos, de considerações altaneiras — e de observações atentas da realidade lá (aqui) embaixo, que acabaram por render ao Ladrão dos Ares várias perspectivas, todas únicas, acerca sobretudo de uma questão essencial, para ele: valeria a pena descer?
Para que descer? Por quê? A vida no alto era dura e gelada, cheia de raios, chuvas, ventos traiçoeiros e bicos a passarem rente aos olhos, vez ou outra, mas… e lá embaixo? Os assaltos, as mortes, a tiranias, a sujeira vista E os malfeitores lançando fogos de artifício…?
É justo esta a linha base deste livro, em sua parre ensaística. Linha a atravessar parte substancial do acumulado de conhecimentos do “viajante sem horário”. Por que voar… e por que descer? E no todo reflexões, fotos e muita aventura reunidas, sim. Aventuras inacreditáveis do “capitão”, suas impressões poéticas, seus sinais também insólitos lá do alto (nem sempre “sinais publicáveis”), seus gritos distantes de terror, ao surgirem raios, gritos a competirem em registro agudo com os terríveis fenômenos atmosféricos. Suas mímicas de estilo. Seu trabalho, por certo tempo, como garoto-propaganda alado (Aquileu carregava uma imensa faixa de certo produto, e certo dia a faixa acabou por se enrolando em sua cabeça, causando-lhe quase um “fim de pipa”: jazer enrolado num fio elétrico — quem sabe para sempre, pois tratava-se de uma periferia, o local quase fatal). Suas ascendentes e descendentes forçadas,suas rasantes perigosas, nas quais somem nossos pastéis, nossos picolés, nossos casacos de frio, nossos guarda-chuvas, nossos refrigerantes, nossos sanduíches de atum dando bobeira, nossos óculos de sol, nossos celulares, nossas “quentinhas” e às vezes nossas namoradas. Pelo menos estas, as namoradas, são sempre devolvidas, quase intocadas. Os xingamentos de Aquileu dos Ares lá para baixo, de vez em quando, ou sua perseguição em mergulhos impressioantes, aquilares, a trombadinhas, a marginais a correrem lá embaixo, contndo o produto do roubo — todos os meliantes são alçançados, pegos e lançados, gritando, vinte ou trinta metros abaixo, a fim de quebrarem els suas bacias e pernas e assim pararem um pouco para pensar e em sua fuga, tão cansativa para nós. Um ato heroico, por parte de Aquileu, em complemento essencial à nossa justiça tão baça, tão aparelhada, tão… falível, tão atarefada, tão molinha, tão tendenciosa, tão pouco afeita a corridas, enfim.
Resumem-se neste livro, por conseguinte, os dados da longa e emocionante queda de Aquileu de Andrada, cujos significados foram, garante-se, captados e, garante-se, transcritos para linguagem mais… terra pelo jornalista Zaco Mourão, o autor da biografia, cuja escrita não fora nada, nada fácil, segundo confessa. “Quatro exaustivos anos conversando com Aquileu por celulares roubados e por via de sinais e até por código morse. Mas no fim… o projeto decolou”, finaliza, não sem graça.
Abundantes e em especial… especiais no livro são as fotos tiradas pelo Viajante sem Horário. Elas emocionam, junto aos textos sotopostos, sempre um primor de poesia cínica. Imagem e textos apelam à liberdade e parecem sorrir juntos, numa mesma piada, da qual somos vítimas, mas compreensivas. São pores do sol, são fotos de satélite, fotos montadas, fotos distorcidas, fotos jocosas, fotos de turistas, fotos impublicáveis (muitas janelas alheias), fotos de trombadinhas jogados lá de cima e em queda livre (quantas expressões curiosíssimas!), fotos icônicas e cômicas de sujeitos lá embaixo, enfurecidos, correndo atrás de seus sorvetes e guarda-chuvas recém-roubados, fotos de “ex-namoradas” dando tchauzinho aos namorados, levadas de repente pelo “Capitão Ventoso”, e fotos dos sorrisos do próprio Aquileu, no ar, em selfies para lá de divertidas, a grandes altitudes e em manobras impressionantes. Sempre solto, não há dúvidas.
Pegue este voo. E vá também para longe.